segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Mundo Pequeno

(do livro "O Livro das Ignorãças")

I
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverteros ocasos.

II
Conheço de palma os dementes de rio.
Fui amigo do Bugre Felisdônio, de Ignácio Rayzamae de Rogaciano.
Todos catavam pregos na beira do rio para enfiar
no horizonte.
Um dia encontrei Felisdônio comendo papel nas ruasde Corumbá.
Me disse que as coisas que não existem são maisbonitas.

IV
Caçador, nos barrancos, de rãs entardecidas,
Sombra-Boa entardece.
Caminha sobre estratos
de um mar extinto.
Caminha sobre as conchas
dos caracóis da terra.
Certa vez encontrou uma
voz sem boca.
Era uma voz pequena e azul.
Nãotinha boca mesmo.
"Sonora voz de uma concha",ele disse.
Sombra-Boa ainda ouve nestes lugares
conversamentos de gaivotas.
E passam navios
caranguejeiros por ele, carregados de lodo.
Sombra-Boa tem hora que entra em pura
de
composição lírica: "Aromas de tomilhos dementamcigarras."
Conversava em Guató, em Português, e em
Pássaro.
Me disse em Língua-pássaro: "Anhumas premunem
mulheres grávidas, 3 dias antes do inturgescer".
Sombra-Boa ainda fala de suas descobertas:
"Borboletas de franjas amarelas são fascinadas
por dejectos."
Foi sempre um ente abençoado agarças.
Nascera engrandecido de nadezas.

VI
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas...
E se riu.Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda emestradas -Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresase os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor degramática.

VII
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.

Manoel de Barros

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

TODAS AS VIDAS

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço... Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa, pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada,
sem preconceitos, de casca-grossa,
de chinelinha, e filharada.

Vive dentro de mim a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos, Seus vinte netos.

Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras!

Cora Coralina

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

COMO UM GIRASSOL

Num momento leve, leve,
Tão suave quanto breve
Como chuva, vento ou neve
Escondendo o arrebol

Num instante muito bela
Como se fosse aquarela
Paisagem numa tela
Em tintas de pôr de sol

Num rompante perfumada
Como se fosse florada
Enfeitar de primavera
Um jardim em derredor

Num repente cantoria
Como se fosse magia
esconjuro, aporia
cantilena em sol e dó

De repente, num rompante,
num momento, num instante... ela vem
e batendo à minha porta me convida
A sair de meu lugar

De repente, num rompante,
num momento, num instante... me contém
E batendo no meu peito, não se importa,
Se convida a adentrar

Nos caminhos onde vou
Já não quero andar tão só
E sei eu que é bem melhor
Ter a musa ao meu lado
O sopro do canto alado
Poesia por farol
Eu vou, eu vou, eu vou...
Mas eu vou como um girassol

MAS EU VOU COMO UM GIRASSOL, MINHA GENTE
EU VOU COMO UM GIRASSOL

Vou aqui juntar palavras
Pra falar de minha sina
Desde tempos de menina
Que carrego em poesia
Dia e noite, noite e dia
Toda a vida sem parar
Minha história é um cantar
E meu cantar é de anarquia

Se essa rua fosse minha
Eu mandava ladrilhar
Com Pedrinhas de brilhante
Pra mais linda do lugar
Se esse bosque fosse meu
E se chamasse solidão
Dentro dele tinha um anjo
Seria o meu coração.

Toda palavra é pouca, toda solidão estreita
Mas seique não há receita para a vida melhorar
Quando a sombra no meu peito, lança em mim sua canoa
Não tem Rosa nem Pessoa pra me sossegar